domingo, abril 29, 2012


'Chove nos campos de Cachoeira', de Dalcídio Jurandir


Roberto Kahlmeyer-Mertens

[Chove nos campos de Cachoeira , de Dalcídio Jurandir. Apresentação de Rosa Assis. Editora 7Letras, 264 pgs.]

Após um jejum de quase 30 anos, a obra literária de Dalcídio Jurandir (1909-1979) começa a ser revisitada com fôlego renovado. À margem das editoras comerciais, até a data de seu centenário de nascimento, o escritor que durante as primeiras décadas do século XX foi lido, reconhecido e admirado pelas gerações de Graciliano Ramos e Jorge Amado, esteve durante todo este tempo relegado ao nicho acadêmico ou submetido ao rótulo de regionalista. Dalcídio Jurandir escreveu onze romances, dez dos quais integram o que ficou conhecido como o Ciclo do Extremo-Norte. Contendo títulos como “Marajó” (1947), “Três casas e um rio” (1958), “Belém do Grão-Pará” (1960), o conjunto destas obras arrebatou em 1972 o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras.

As criaturas de Marajó em prosa trabalhada e lavrada

O primeiro título deste conjunto — que o filósofo e crítico literário Benedito Nunes chamou de “ciclo romanesco” — é “Chove nos campos de Cachoeira”. O livro, que também é considerado o primeiro romance amazônico moderno, recebe agora uma nova edição. Com grande força e intensidade narrativa, e marcado pela influência da segunda geração do romance modernista no Brasil, esta obra faz mais do que pintar quadros da vida singular de quem a escreveu. Dalcídio Jurandir descreve o horizonte amazônico a partir de vivências regionais, o contexto humano e geográfico com a pluralidade de suas imagens, suas elaborações linguísticas típicas, a cultura e, até mesmo, as concepções sociopolíticas que perpassam esta mundividência.

“Chove nos campos de Cachoeira” foi originalmente publicado em 1940. A obra se ambienta em Cachoeira do Arari, lugarejo no qual habita Alfredo, personagem que se identifica paradigmaticamente com a gente que povoa a Amazônia paraense rural. O romance retrata com plasticidade a existência humilde e agreste de personagens que são pequenos proprietários de terra, campeadores, pescadores, barqueiros, empregados das fazendas, enfim, a matéria humana que Dalcídio chamava carinhosamente de a “farinha-d’água de meus beijus”.

No enredo, tem-se a ida do menino Alfredo para a capital com a finalidade de dar prosseguimento aos estudos. Os contrastes entre o interior e a metrópole, os costumes da europeizada Belém frente aos da provinciana Marajó se fazem sentir na trama que envolve tanto as memórias afetivas do narrador, quanto um sentimento de pertença à terra marajoara. Destaque-se na referida narrativa o capítulo “Caroço de tucumã”; neste, uma pequena semente de palmeira nativa, que viajou com o pequeno protagonista desde Marajó, ganha significação especial no romance. Longe do solo inundado de Cachoeira na época de cheia, era na semente que o menino buscava a segurança de quem o compreendesse e o animasse: “Sentia-se só, distante, imaginando sempre. Só a bolinha tomava corpo de gente, era sua amiga. Era o corpo da imaginação. Bolinha fiel e rica de fazer de conta!”. Mais do que produto da imaginação e carência pueril, a semente de tucumã faculta interpretações que o tomam como metáfora da semântica amazônica que Dalcídio Jurandir, bem como Alfredo, seu alter ego, jamais deixou de rever.

Nova edição corrigida e apontada pelo autor

A presente edição de “Chove nos campos de Cachoeira” foi estabelecida a partir de um exemplar da primeira edição com apontamentos marginais e correções do próprio Dalcídio. A observância dos anseios do autor a partir deste texto de referência permitiu a depuração do original que constitui sua colação definitiva. As modificações são sensíveis, embora nenhuma delas altere substancialmente a prosa dalcidiana. Se comparada com a edição anterior (a crítico-filológica, caprichosamente organizada pela pesquisadora Rosa Assis em 1998), notam-se pequenas alterações de formulação e vocabulário; vez por outra, mudanças de pontuação reduzindo longos períodos.
Mesmo com essas corrigendas, continuamos a ter em “Chove nos campos de Cachoeira” o mesmo romance que garantiu a seu criador o Prêmio Dom Casmurro, oferecido pela Editora Vecchi, a mesma narrativa densa e fluente, a mesma essência e virtualidade que fazem com que Gunter Karl Pressler, em um de seus ensaios, nos afiance a autenticidade e universalidade do Romancista da Amazônia.

domingo, abril 15, 2012

A fundamentação das ciências da realidade histórico-social: Da atualidade do projeto hermenêutico diltheyano.



DILTHEY, Wilhelm. Introdução às Ciências Humanas – Tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história. Tradução: Marco Antônio Casanova, Forense Universitária, 2010.


Wilhelm Dilthey (1883-1911) é um pensador mais conhecido do público das ciências sociais do que propriamente pelo da filosofia. Apontado como um dos mais decisivos filósofos na passagem dos XIX-XX, Dilthey criou-se na aquecida cena intelectual berlinense, na qual militavam figurões como Humboldt[1] e Droysen.[2] Nessa ambiência, com apenas 17 anos, Dilthey entendia necessária a tarefa de uma fundamentação definitiva da ciência histórica e, por meio disso, das ciências humanas (= ciências do espírito). A presente intuição da juventude, alentada desde o ano de 1850, será a mesma que se desenvolverá ao longo da sua ampla e eclética obra até as vésperas de sua morte.
Na mesma proporção que assistemática, a obra diltheyana denota grande lucidez ao tratar das ciências humanas numa época em que o modelo metafísico dos idealismos experimenta sua crise em face da ascensão da doutrina positivista em toda a Europa. Ante a esta crise de paradigmas filosóficos, julgava-se que apenas o positivismo poderia garantir o conhecimento válido. Sendo assim, até Dilthey, a filosofia, se não quisesse ser considerada apenas um “discurso literário”, parecia estar fadada a ter que se subordinar à ciência, convertendo-se em uma disciplina acessória assemelhada à ontognoseologia.[3]

NA CONTRAMÃO DO POSITIVISMO
Entendendo que o positivismo[4] exerce uma ação abstrativa sobre as ciências humanas, Dilthey indica que as ciências naturais (abstrativas por excelência em seu modo de agir) isolam a vida de seus fenômenos convertendo-os em objetos. Deste modo, para que as ciências naturais possam apontar um fenômeno como objeto de pesquisa, seria preciso que todo o contexto do mundo vivido seja desconsiderado, daí a avaliação do filósofo segundo a qual a abstração “desvivificaria” o conhecimento.
A resposta diltheyana tanto a este problema, quanto ao dilema filosófico anteriormente mencionado, é dada em sua “filosofia da vida”, quando o filósofo empreende a tal fundamentação das ciências particularidades da sociedade e da história num terreno próprio ao humano. Para esta tarefa, Dilthey dialoga de perto com a obra de Kant[5] e contesta muitas das posições adotadas por um hegelianismo datado.[6] Munido do método hermenêutico de Schleiermacher,[7] desenvolve um projeto que poderia ser nomeado “crítica da razão histórica”. Como a denominação anuncia, Dilthey visa ampliar os termos da filosofia crítica kantiana à ciência histórica, passo dependente da determinação do estatuto do homem na constituição das referidas ciências. Dilthey, assim, investe pesado na fundamentação das ciências humanas, sabendo que é no espaço vivencial total (i.e, o âmbito da vida) que se conquista o autêntico conhecimento do mundo circundante. Por isso, é que podemos asseverar que o centro da filosofia da vida de Dilthey consiste no fato de que a nossa interpretação da realidade não é primariamente cognitiva. Ela inclui sempre orientações das vivências que não podem ser separadas de visões de mundo.

A VIVÊNCIA COMO CRITÉRIO
A proposta da fundamentação das ciências do homem, da sociedade e da história, na obra de nosso autor, ganhou muitas facetas. Por exemplo, em seus escritos adiantados, o filósofo investirá em uma psicologia analítico-descritiva, entendendo que esta seria capaz da tal fundamentação por um viés psicológico-gnosiológica das ciências. Híbrida de elementos da temática da razão histórica, bem como da psicologia, a obra de maturidade do autor se mostra preocupada em criar uma boa relação entre as ciências da realidade histórico-social e as naturais. Para tanto, seria necessário delimitar o lugar paradigmático da existência humana na constituição da vida histórica, esta que, por sua vez, se engendra imediatamente a partir da percepção de uma conjunção histórica peculiar.
Considerado um dos reformadores da hermenêutica, com Dilthey este método sai da esfera puramente filológica, na aplicação de textos bíblicos e jurídicos, para ganhar o caráter propriamente filosófico. É com Dilthey que vemos, por exemplo, enfatizada a clássica distinção entre o fazer das diferentes ciências em pauta: as naturais (e ao lado delas a filosofia), que abstraindo o fenômeno de seu horizonte total, explicam-no, sendo seu conhecimento depreendido de hipóteses (são explicativas no sentido literal de ex-plicare); por seu turno, as humanas tomariam o fenômeno em seu horizonte próprio compreendo-o seu todo (são, portanto, estritamente compreensivas como na origem latina do termo comprehensio).

RECEPÇÃO E CRÍTICA

Sendo considerado por Max Weber[8]o autor que primeiro levou a sério o problema da metodologia das assim chamadas ciências humanas, o filósofo, psicólogo, pedagogo, historiador e biógrafo despertou a admiração pensadores das mais diversas áreas do saber. No Brasil, o trabalho de recepção e crítica de Dilthey vem sendo elaborado timidamente desde a década de 1930, tendo entre os seus estudiosos o historiador Octávio Tarquínio de Sousa[9] e o ensaísta José Guilherme Merquior.[10]
Cem anos após sua morte (celebrados em 2011), escritos de fases distintas da obra de Dilthey vêm sendo traduzidos por editoras com foco universitário. O resultado lacunar dessas publicações ainda não nos permite um perfil nítido do filósofo. Reconhecemos, porém, que estes títulos favorecem o contato do leitor de língua portuguesa com traduções confiáveis de Dilthey que poderão motivar novas e oportunas pesquisas sobre este imprescindível pensador. 

REFERÊNCIAS

DILTHEY, Wilhelm. Introdução às Ciências Humanas – Tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história. Tradução: Marco Antônio Casanova, Forense Universitária, 2010.

GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Org.: Pierre Fruchon. Tradução: Paulo César Duque Estrada, Editora Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 1998.

LESSING, Hans-Ulrich. Wilhelm Dilthey. Böhlau Verlag GmbH & Cie, Köl, Weimar, Wien, 2011.

RÖD, Wolfgang. O hegelianismo hoje – um anacronismo? In: Hegel: um seminário na Universidade de Brasília. Org.: Nelson Gonçalves Gomes. Editora Universidade de Brasília, 1979.

[1] Friedrich Wilhelm Christian Karl Ferdinand (1767-1835) filósofo e linguista fundador da Universidade de Berlim (Humboldt-Universität). Fez importantes contribuições à filosofia da linguagem, à teoria e prática pedagógicas e influenciou o desenvolvimento da filologia comparativa. Humboldt é reconhecido como o primeiro linguista europeu a identificar a linguagem como um sistema dotado de regras, e não simplesmente uma coleção de palavras e frases acompanhadas de significados.
[2] Johann Gustav Droysen (1808 - 1884) foi um dos mais importantes historiadores alemães do século XIX. Droysen notabilizou-se não somente pelos trabalhos acerca da antiguidade grega e da história moderna europeia e prussiana, mas também pelas suas reflexões sobre teoria e metodologia da ciência histórica.
[3] É a teoria que se ocupa de tratar como conhecimento dos entes se dá. O filósofo brasileiro Miguel Reale indica que esta se ocupa das seguintes disciplinas filosóficas: Ontologia, Epistemologia, Deontologia e Lógica.
[4] Doutrina filosófica criada por Auguste Comte que propõe à existência humana valores completamente humanos, afastando radicalmente a teologia e a metafísica. O Positivismo associa uma interpretação das ciências e uma classificação do conhecimento a uma ética humana radical.
[5] Immanuel Kant (1724-1804) filósofo alemão, considerado um dos pensadores mais influentes da era moderna. Kant é famoso sobretudo pela elaboração do denominado idealismo transcendental: todos nós trazemos formas e conceitos a priori (aqueles que não vêm da experiência) para a experiência concreta do mundo, os quais seriam de outra forma impossíveis de determinar.
[6] O hegelianismo é uma corrente filosófica racionalista desenvolvida por Georg Wilhelm Friedrich Hegel. O objetivo de Hegel era reduzir a realidade a uma unidade sintética dentro de um sistema denominado idealismo transcendental. Hegel criticou as concepções anteriores de filosofia como sendo sem vida e não históricas; sustentava que a filosofia está sempre enraizada na história, embora sempre persiga uma concepção de realidade como um todo em evolução, em que cada parte é animada por todas as outras.
[7] Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834) filólogo, filósofo e teólogo, que desenvolveu o método hermenêutico e o utilizou na tradução das obras de Platão para o alemão. Foi influenciado Kant e Fichte, mas não se tornou um idealista subjetivo.

[8] Maximilian Carl Emil Weber (1864 - 1920) foi um sociólogolo alemão economista e considerado um dos fundadores do estudo moderno da sociologia, mas sua influência também pode ser sentida na economia, na filosofia, no direito, na ciência política e na administração.
[9] Octávio Tarquínio de Sousa (1889-1959) foi um advogado, jornalista e historiador brasileiro. Sua mais importante obra é História dos Fundadores do Império do Brasil (1957).
[10] José Guilherme Merquior (1941-1991) foi filósofo, sociólogo e escritor brasileiro. Escritor prolífico, foi membro da Academia Brasileira de Letras. O alicerce da obra escrita é o que se chamaria de culturologia, ou mais especificamente, História das ideias, tributária da Geistgeschichte alemã.

sexta-feira, abril 06, 2012

Em meio a todas as muitas divisões interna e capítulos, a narrativa que Droysen dedicou às ideias de Alexandre na relação com Aristóteles é digna de nota.


Alexandre o Grande: o monumento de Droysen ao conquistador macedônio

                                                      
DROYSEN, Johann Gustav. Alexandre o Grande. Tradução: Trad. Regina Schöpke; Mauro Baladi. Editora: Contraponto, 2010.


Se verdade que o nome de Alexandre o Grande (356-326 a.C.) dispensa qualquer tipo de apresentação, é preciso dizer que isso se deve não apenas aos seus feitos heróicos, mas, também, às narrativas destes fatos. As histórias de Alexandre contadas desde Plutarco sempre despertaram o interesse de todos os públicos. Sua juventude, impetuosidade e qualidades de estrategista são motivos mais que suficientes para explicar a atenção estudiosa que o tema recebe. Diante disso, em meio à longa tradição de recepção e crítica da história daquele herói, encontramos algumas obras que possuem especial relevo por seu conteúdo revelador. Referimo-nos a obra Alexandre o Grande, de Johann Gustav Droysen (1808-1884),  em recente e apreciável tradução para o português.
Alexandre o Grande é a primeira obra de historiografia do historiador e filósofo alemão publicada em nosso país. Obra com mais de quinhentas páginas, encontramos ali uma síntese que bem situa aspectos políticos e militares relativos à unificação da Grécia, da ascensão e queda do Império Persa e à origem e consolidação da monarquia macedônia.
Em meio a todas as muitas divisões interna e capítulos, a narrativa que Droysen dedicou às ideias de Alexandre na relação com Aristóteles é digna de nota. No referido tópico, ainda que com poucos subsídios, Droysen reconstrói uma interpretação histórica tão detalhada quanto possível do modo com que aquele grande líder pensava. Em tal ideário, a prosperidade do império, as reformas administrativas e a vida científica e social (nessa última: a universalização do estilo helênico, a transformação dos povos asiáticos e a evolução dos macedônios) eram pontos abordados.
Antes disso, contudo, nosso biógrafo traça um paralelo plausível entre aspectos intelectuais e morais da filosofia de Alexandre e a obra política de Aristóteles, seu preceptor. Paralelismo que se ilustra com a seguinte passagem do livro: “A ação era para Alexandre aquilo que o pensamento era para Aristóteles. Porém, se o filósofo, entrincheirado em um silêncio propício à meditação, podia dar ao seu sistema metafísico a perfeição e o rigor que só pertenciam às ideias, Alexandre era forçado a agir em meio a um turbilhão de acontecimentos e de relações imprevistas que obrigavam a tomar decisões imediatas” (p.471). Com esse argumento, Droysen nos permite entrever porque aquele herói fazia jus ao epíteto de o grande; do mesmo modo, é por formulações como essas que Alexandre o Grande continua a ser uma fonte útil ao estudo do tema, mesmo levando em conta as correções e mudanças de perspectiva introduzidas pela bibliografia mais recente.

  Johann Gustav Droysen (1808-1884), filósofo da história e historiador que conquistou distinção na Alemanha do século XIX ao oferecer resistência aos influxos que a filosofia positiva, com Buckle e Taine, exerciam sobre o pensamento europeu. Droysen integra uma nova geração de pensadores da história conhecida como o novo realismo político. O pensador foi considerado um dos principais representantes da historiografia na Alemanha, isso porque seus métodos e procedimentos renderam qualificação à moderna história alemã, o que faz com que o autor se veja associado àquilo que ficou conhecido como “escola prussiana”. A dedicação aos estudos de história antiga fez com que o autor adquirisse reconhecimento precoce com a publicação, em 1833, de A história de Alexandre o grade (Geschichte Alexanders der Grossen, como reza o título original). Publicada quando o autor possuía apenas 25 anos de idade, esta é considerada por muitos seu magnum opus, fazendo com que ele ficasse conhecido como o descobridor da história do helenismo.

quinta-feira, abril 05, 2012

O leitor encontra neste volume a mais judiciosa seleção de peças líricas e eróticas da obra literária de Luís Antônio Pimentel.


O amor segundo Luís Antônio Pimentel: três seletas complementares

PIMENTEL, Luís Antônio. O amor segundo Luís Antônio Pimentel. (Org.) Luiz Augusto Erthal; Luiz Antônio Barros. Niterói: Nitpress, 2012.


Uma antologia formada de três partes: poesias diversas de caráter lírico, haicais eróticos e uma concisa novela romântica. Edição comemorativa do centenário de um poeta que ama tanto e de tanto amar fez de sua poesia uma incessante celebração do amor. Como veremos, a poesia sub specie amoris não é apenas o tema do presente livro, é disposição promotora de cada um de seus escritos. O leitor encontra neste volume a mais judiciosa seleção de peças líricas e eróticas da obra literária de Luís Antônio Pimentel. Quanto a sua forma, notar-se-á que seus três momentos integrantes se completam, fazendo com que a coletânea conserve coerência, coesão e efeitos estéticos de onde quer que se arranque à leitura.
Compartilhando com este expediente original, também este ensaio de apresentação toma a licença de imitar a mobilidade estrutural do livro, de sorte que os três tópicos que aqui se seguem são compostos de modo a apresentar o livro como um todo e, simultaneamente, tratar de suas partes específicas. Deste modo, também estes prolegômenos, a partir daqui, podem ser lidos na ordem que melhor convier ao leitor, sem que este traço de autonomia comprometa seu propósito primordial.

*

Como o título do florilégio indica, a poesia lírica lhe dá a tônica dominante. Afinal, compendiados, aqui, estão poemas de Ciranda, cirandinha... (1933), Prece em lágrimas (1940), A curiosa de olhos doces e outros poemas (1955), Canção para os lábios da amada (1957) e Corpo falado (1985), trabalhos que formam o núcleo duro da obra lírico-amorosa de nosso autor. Se em outro lugar, ao tratarmos do lirismo na poesia haicai em Pimentel, afirmamos que o autor se mostrava preocupado com os limites da lírica naturalista típica do zen-budismo (este que propugnaria uma poesia estreme do eu-lírico),  é preciso grifar que esta assertiva não vale aqui.
Nas poesias aqui consignadas – o leitor constatará – Pimentel vai inteiro para o poema e é romântico ao fazê-lo. Romântico, neste caso, não é apenas uma referência à temática do amor, mas, antes, se refere a um conjunto de características que o aproximariam ao estilo de um romantismo de escola, a saber: o subjetivismo, o individualismo, o idealismo, o sentimentalismo, a fantasia e o gosto pelo pitoresco. Comparecendo em Ciranda, cirandinha... e em Prece em lágrimas, estes elementos, em roupagem eloquente e declamatória, evocam, alhures, a lírica de um Baudelaire, é o que se tem ao compararmos os versos do poema “Tua voz”, de Pimentel (“Tua voz é a música de um perfume,/alma de uma flor.../(...) – perfume a esvair-se/pela fenda de um frasco de cristal.”) com o do poema “O frasco”, do autor francês (“Talvez achemos um frasco a recordar o outrora,/ do qual uma alma vibrante se evapora.”).
Se forçosa a tentativa de alinhar a lírica pimenteliana ao romantismo (o francês com Baudelaire ou, mesmo, o brasileiro da terceira geração, como no caso do lirismo sensual de

  Cf. KAHLMEYER-MERTENS. R. S. Fenomenologia do haicai – Gênese, desenvolvimento e ressonâncias da poesia haicai em Luís Antônio Pimentel. Niterói: Nitpress, 2010.
  BAUDELAIRE, Charles. Le Flacon. In: Les fleurs du mal – Œuvres Complètes. Paris: Calmann-Lèvi, 1868. p.156.  “Parfois on trove um vieux flacon qui se souvient, / D’où jaillit toute vive une âme qui revient. ”

Castro Alves), não seria difícil encontrar na matriz da poesia de Pimentel influxos da obra poética de Figueiredo Pimentel e de um romantismo tardio ainda sobrevivendo durante as décadas de 1910-30 em meio à roda do Café Paris. Este movimento sui generis de importância decisiva para a literatura de uma Niterói à época capital da província fluminense, funcionou como uma espécie de último bastião do simbolismo, do romantismo e do parnasianismo bilaquiano frente aos abalos da Semana de Arte Moderna de 1922. Pimentel chegou a conviver com alguns remanescentes deste movimento e, por intermédio destes, incorporou algo da poesia tardo-romântica ao seu repertório.  Nem tanto devedor à lira lacrimosa de Olavo Bastos ou ao picaresco em Lili Leitão, identificam-se na lírica pimenteliana notas poéticas que remontam à espontaneidade jovial de Max de Vasconcellos e à densidade sensual de Sylvio Figueiredo (e não se descarta a sub-reptícia influência de um modernismo à Mario de Andrade).
Mas a poesia de nosso autor é lírica não apenas por corresponder aos referidos caracteres formais de estilo ou por se associar a poetas que exercitam este gênero. Indo a fundo na análise do lírico, o crítico literário A. Barcellos Sobral, em seu distinto tratado de estética,  nos permite afirmar que a poesia de Pimentel é fundamentalmente lírica ao recriar, em sua complexidade e riqueza, o universo do belo em sua natural plasticidade e fascínio. Resguardando as qualidades primitivas do lírico (como aquilo que o articulista chamou de “positividade ideal”) e suas respectivas derivações (ordenação, plenitude, delicadeza, elevação, amorosidade...), os atos líricos de nosso poeta engendram estados de plenitude amorosa nos quais o amor à natureza e o amor entre amantes são, pelo menos, duas constantes observáveis. Esta incidência faz com que encontremos na obra de Pimentel estofo para ilustrar parte da seguinte tese de seu parceiro Barcellos Sobral: “É evidente que nossa existência se define em termos líricos ou dramáticos”.
Exemplos do traço lírico-amoroso na poética de Pimentel podem ser encontrados amplamente na seleção aqui apresentada (chamemos a atenção para os títulos: “Poema verde”, “Canção para navegar”, “Poema da concha do mar” e “Intelectual”), peças que ilustram a qualidade derivada do lírico extensivo à natureza. Nestes, existem casos curiosos de prosopopeia, quando o poeta, ao versejar liricamente, personifica elementos naturais, como o leitor poderá conferir nos poemas: “Crepúsculo de inverno”, “Eu tenho ciúmes do sol” e “O Fuji dentro da tarde”.

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  Innuendos eróticos estão por toda parte na poesia de Luís Antônio Pimentel e, em alguns casos, eles se mesclam de tal maneira à lírica amorosa do autor a ponto de os julgarmos, a esta, indissociáveis. Diabolizado por muitos, alguns críticos não deixam de ter alguma razão quando afirmam que o erotismo é um motivo menor para a poesia; entretanto, não se pode esquecer que, no modernismo, Drummond e Savary dedicaram poemas a esta temática, comprovando que esta é matéria para quem tem a sensibilidade e o talento de lidar com suas exigências específicas. Ao lermos Pimentel, verificamos que o poeta, ao se arriscar nas raias da erótica, nos dá mostras dessas habilidades ao respeitar suas tênues medidas e ao jogar com suas delicadas tensões. Para caracterizar esta finura e parcimônia no trato com a palavra – especialmente com respeito a seus haicais eróticos – vale parafrasear aquele filósofo de outrora: “Ele pesa ovos de mosca em uma balança de teia de aranha”.


  Pimentel testemunha ter privado da companhia dos seguintes remanescentes da roda literária do Café Paris, no ambiente das redações de jornais ou nos cenários literoboêmios de Niterói, por volta de 1930: Olavo Bastos, Gomes Filho, Lourenço Araújo, Brasil dos Reis, Kleber de Sá Carvalho, Mazzini e Luiz Rubano, Sylvio Figueiredo e Lefort Varon (foi com este último que, em 1926, o precoce Pimentel aprendeu a metrificação de poesias canônicas como o soneto alexandrino).
  SOBRAL, A. Barcellos. Contemplação da unidade – Tentativa de uma holística da existência. 2ª.ed. Niterói: Nitpress, 2009.   Idem, p.64.


Afora a destreza e o carisma no poetar, os haicais eróticos de nosso autor em muito são favorecidos pela própria compreensão que ele tem de erotismo. Afinal, erótico, no glossário poético de Pimentel, está longe do talho grosseiro e da sexualidade devassada. No erotismo pimenteliano, expressa-se a beleza ideal no domínio do sensível, é manifestação erótica da vida, pois nela transparece a beleza vivaz típica de Eros. Nos domínios deste “deus”, o poeta sabe ouvir-lhe os anseios e compreender que coisa alguma precisa ser explicitada para produzir efeito, ou seja, na poesia erótica de Pimentel nada se inclina ao desmesurado, ao ordinário ou ao obsceno.
Fazendo coro com Hugo Tavares e Xavier Placer (nos aparatos críticos que ambos assinam para o livro Corpo falado, de Pimentel) identificamos que nesse encontro de metáforas e metonímias com o Eros platonicus, que fala alto na concepção de erotismo pimenteliano, entra em cena uma linguagem impossível de ser traduzida por meio exclusivo das proposições da crítica literária. Por sorte, contra este impedimento, o leitor ainda pode contar com o acesso fornecido pela presente seleta que permite experienciar a poética-erótica de Pimentel e pensar o quanto esta já não seria uma radicalização do lirismo do mesmo autor.

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Doze dias com Leviana é, como seu próprio autor adverte já na primeira edição, uma “novela relâmpago em 13 lances, imprópria para menores”. Escrita em 1936 e publicada originalmente em 1944, é pouco provável que o texto, em nossos dias, cause algum escândalo. Considerada outrora literatura licenciosa, hoje nada há nessa narrativa que ofenda o gosto do público ledor maduro; muito pelo contrário, com a leveza que o adjetivo “leviano” denota em primeira mão, temos aqui a aventura dialética entre amantes, na qual, sedutoramente, a personagem feminina acaba por submeter seu homem aos caprichos do amor.
Tais atitudes na personagem são irrefletidas, é isso que o autor nos diz: “a maldade inconsciente era como que um sexto sentido de Leviana”, e a própria Leviana admite: “O raciocínio oxida a juventude. Uma mulher que raciocina é uma mulher triste.” No desajuízo couleur de rose da jovem sereia, entretanto, é onde se oculta seu mais diabólico trunfo; em sua inconsciência melindrosa sabe ela que ao preferir a resistência à entrega, a incerteza à constância, a adulação ao afago sincero e o destrato ao rapapé banal, se causa mais efeito do que com os cosméticos, adornos e elegantes sedas que compõem seu universo narcíseo. De sua cultura literária “toda feita nas bibliotecas de aluguel”, desfia-se de Ovídio a Proust (com escala em Laclos), um cordão de máximas que, com azo de doutrina excelsa, atiçam todos os cacoetes, deboches e afetações que fazem com que seu amante aniquile seu orgulho próprio implorando por um afeto que não vem senão na forma de migalha amorosa.
Quantas “Levianas” não encontramos pela literatura afora? Muitas, por certo! São Marguerites, Lucíolas, Alissas, Lolitas, Anitas...;  no entanto, a intuição para a personagem de Pimentel provém da obra do literato português Antônio Ferro.  Publicada em 1921 (portanto, 23 anos antes da novela de Pimentel), a Leviana portuguesa é personagem que integra a tentativa do escritor luso de reformar o gênero romanesco em sua literatura natal.

  Comentário de Voltaire sobre a sutileza psicológica de Pierre de Marivaux em suas peças escritas para a Comédie-Française.
  Personagens de romances em ordem de referência: A dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho; Lucíola, de José de Alencar; A porta estreita, de André Gide; Lolita, de   Vladmir Nabokov e Presença de Anita, de Mário Donato.
  Outras inspirações teriam vindo das vivências íntimas de Pimentel. Contudo, as evasivas de nosso sempre discreto autor nunca licitaram certeza às especulações sobre a existência factual de uma pessoa por trás do codinome Leviana, deixando quaisquer conjecturas entregues a elas mesmas.


Joia do novo romance português, esta obra, entretanto, pouco tem a ver com a do brasileiro. Na primeira, observa-se um cariz erótico-sensual; no segundo caso, a malícia requintada da personagem-título não chega a ser lasciva. Como avaliza Gomes Filho no prefácio da edição princeps, a Leviana na pena de Pimentel empresta à obra acento psicossensual, volubilidade que, correspondendo à figura mítica de Volúpia, também é fruto da cópula de Eros com Psique.
Bem como a obra de Antônio Ferro, Doze dias com Leviana, de Luís Antônio Pimentel, em sua época, causou significativa impressão à crítica literária especializada. Esta, entretanto, não foi homogênea em suas apreciações: houve quem comparasse o livro a “um Pitigrilli com a pitada das Garotas do Alceu”,  quem (mais proximamente envolvida com a temática) reputasse todo o escrito como “a vaia de um despeitado” e, por fim, alguns que teimavam em indicar, anacronicamente, parentescos deste livro com a prosa da então celebrada escritora francesa Marie Chantal, no pós-guerra.
Mas o valor estético dessa obra que ora se reedita não deve ser estabelecido apenas pela autoridade de exames passados. Que o próprio leitor avalie ao se colocar em meio a essa narrativa que conjuga magistralmente coquetismo e vassalagem amorosa.

Antes de se passar à leitura, entretanto, é preciso enaltecer a iniciativa da Editora Nitpress, na pessoa de seu publisher Luiz Augusto Erthal, em publicar este volume  que tão bem evidencia a obra de um autor que hoje, sem favor algum, é um dos mais importantes e atuantes na literatura fluminense. Registre-se também o trabalho do professor Luiz Antonio Barros, antologista experimentado, cujas criteriosas e sempre arrazoadas opções (além do estabelecimento das notas e glossário) se revertem, com esta publicação, em um perfil fidelíssimo de nosso poeta centenário.